quarta-feira, 27 de maio de 2009

TV

Valores distorcidos premiados em TV aberta.

Já era tarde quando cheguei em casa. Um dia repleto de trabalho ocupara minha mente durante o prolongado expediente. A TV estava ligada em qualquer canal, preparei um jantar e sentei em frente à máquina esvaziadora de pensamentos para descansar. Minha idéia era justamente ficar alguns momentos sem pensar em absolutamente nada, enquanto meu corpo preparava-se para dormir.
À minha frente um famoso programa de TV ao qual, embora muito eu tenha ouvido falar, nunca tenha assistido: O Aprendiz, do renomado empresário Roberto Justus. A dinâmica do programa é simples. Trata-se de um "reality show" - nem tão real assim - em que se procuram profissionais com grande potencial no competitivo mercado de trabalho atual. Provas eliminatórias sucedem-se até o momento em que sobrevive apenas uma gloriosa pedra preciosa para as corporações empreendedoras.
Ontem, eram apenas três competidores. Na verdade competidoras, visto que eram três moças compondo o quadro de participantes finais do programa. As três eram estudantes universitárias: uma de administração, uma de jornalismo e a outra de publicidade. A prova à qual elas teriam de submeter-se parecia ser interessante. Elas sairiam, sem dinheiro, de Los Andes, cidadela cituada a aproximadamente 100km de Santiago, e tinham o prazo de sete dias para chegar a um hotel em São Paulo. A vencedora seria aquela que chegasse antes.
Para atingirem seus objetivos e mostrarem-se competentes, as três participantes saíram pelas ruas chilenas afora a fim de juntar trocados suficiente para bancar meios de transporte que as levassem de volta a São Paulo. Para tanto, improvisavam um portunhol da pior qualidade a contar descabidas mentiras aos ingenuos passantes. Diziam que se tinham perdido do grupo e estavam com fome e sem dinheiro, ou ainda que tinham perdido a bolsa com todos documentos e precisavam voltar ao Brasil porque a irmã grávida estava com problemas. Enfim, as barbaridades foram daí pra pior.
A primeira a chegar demorou menos de um dia e a última, menos de três. Todas orgulhosas por suas façanhas, sem sequer mostrar algum pudor em relação às cabulosas mentiras que tinham contado para estar ali, ou ressentimento por enganar pessoas que nada tinham a ver com seus sonhos de tornarem-se celebridades empreendedoras. Até aí, minha reação era de espanto em relação à postura das participantes, mas ainda haveria de haver o julgamento dos mediadores do programa quanto aos meios utilizados pelas moçoilas. Para minha maior surpresa, não foi isso o que aconteceu, o apresentador sequer cogitou não premiar as descaradas concorrentes, reforçando o comportamento deslavado de raspas de ética, apresentado pelas três. Ali caricaturara-se o cenário em que picaretas, enganadores e mal-carateres acabam por ser premiados no turbilhão de constante competição ao qual nos submetemos todos os dias.
Se não bastasse todo esse espetáculo de escrotidão, para coroar o flagrante de inversão de valores, o elegante apresentador Roberto Justus resolveu questionar o empreendedorismo de uma das concorrentes. A participante em questão, após mentir para um homem de aparência simples em Santiago, recebeu promessa de ajuda desse, porém, para tanto, ela teria de locomover-se até Concepción - afastando-se, assim, de São Paulo. A estudante resolveu arriscar e foi até Concepción, de onde o homem, comovido pela história que ouvira, gastou milhas acumuladas para bancar uma viagem de Santiago até Buenos Aires para a concorrente. Justus, sobre a estratégia adotada pela candidata, questionou a moça quanto à ansiedade em aceitar a primeira ajuda que a fez assumir grande risco, tanto por distanciar-se de São Paulo quanto por acreditar em ajuda de pessoa tão mal aparentada. Poderia ser pior? Sim! Todos que estavam na mesa concordaram com as palavras do apresentador, inclusive representantes do SEBRAE, que apoiam o programa. Por sinal, como pode uma instituição como o SEBRAE fazer um papelão desses em um programa de valores, no mínimo, estúpidos.
Não foi sequer citado, em nenhum momento, a necessidade de manter-se certa postura ética frente a qualquer desafio ou situação a qual nos deparamos. Não importa se o mundo em que vivemos é tomado por valores de individualismo e competitividade extremados, a mentira continua sendo abominável e a televisão continua sendo o meio de comunicação em massa em que a população espelha-se.
Aquele programa que deveria me ajudar a relaxar, apenas me fez ficar puto.

Braga

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