terça-feira, 31 de março de 2009

Cansado

Com poucos anos vividos. Cansado.

Quero me retirar. Aposentar.

Não tenho sonhos. Não consigo tê-los. Fui assaltado.

Me tomaram todas as ideias. Não eram muitas. Poderiam dizer alguma coisa para você. E você me responderia como fui estúpido em meus raciocínios estelionatários.

Sem rumo. Permaneço. Cansado. Recebo. Dia após dia. Tapas. Tapas. Tapas. A minha face não cansa de apanhar. Mas eu canso. Cansado. Cansaço. Caralho. Caralho.

Estou cansado de brigas. Reclamações. Não tenho forças nem para discutir. E, eu já fui um puta de um chato.

Nem escrever. Prometi que escreveria um conto. Mas não escrevo. Poderia me esconder atrás do tempo. Dizer que tive todos os segundos da minha existência tomados. Mentira. Cansaço. A única coisa que temos é tempo. Falta inspiração. Inspira. Inspira. Falta. Falta o ar. Falta o ar para inspirar. Sufocado em meu desvio de sépto sigo roncando. Sufocado. Cansado. Cansaço. Caralho. Caralho.

Adalberto Pereira

quarta-feira, 25 de março de 2009

Cadastro de torcedores

Poderia falar que é inconstitucional. A exigência de cadastro de torcedores, caso instituída, seria inconstitucional. Um requisito desses fere o direito de ir e vir do cidadão, não apenas do torcedor. Além de ser uma forma de presumir que aquele cidadão seja um delinquente em potencial.

Você acaba criando ônus excessivo para um cidadão que pretende apenas assistir o jogo. Sendo que pouco mudará a vida do marginal que frequenta o Estádio. Pior ainda. Você vai seguimentar na sociedade e rotular os torcedores. Dentro desse grupo você encontrará: marginais fanáticos, torcedores fanáticos e poucos torcedores eventuais, que vão se sujeitar a esse tipo de cadastro. Ou seja, afastará ainda mais as famílias dos estádios.

A aplicação de normas no direito deve respeitar três pré-requisitos: (i) a adequação, (ii) proporcionalidade e (iii) razoabilidade. No presente caso, nenhum deles seria respeitado, caso se instituísse o cadastro de torcedores.

A medida não é adequada, pois não atinge o fim que se proprõe. A repressão e controle da violência não seria mais efetiva com o cadastro, e a violência não seria mitigada, tendo em vista que você rotularia os torcedores e faria com que esses realmente se sentissem diferentes, a partes na sociedade e na forma de se relacionar com os seus pares dentro e fora do estádio, simplesmente pelo fato de que após o cadastro ele ter se tornado um "torcedor".

Além disso, a medida não é proporcional quando você sopesa outros princípios como o a presunção de inocência, o direito de ir e vir e o princípio da igualdade. Os problemas com a violência não podem causar tamanho ônus aos cidadãos que vão ao estádio apenas assistir o jogo, em desrespeito a princípios constitucionais e sem que o fim almejado seja atingido, nem de longe.

A medida não é razoável, pois existiriam outras formas mais eficientes de combate à violência nos estádios. Lembrando que a violência é tão problemática dentro como fora dos estádios. Logo o cadastro não evitaria que torcidas adversárias se encontrassem nas ruas e nos metrôs para brigar. Outras medidas devem ser pensadas que não o cadastro de torcedores.

O fato de outros países não terem implementado essa medida, tal como a Inglaterra que conseguiu conter os hooligans, que eram bem piores do que qualquer torcida organizada brasileira, não é justificativa para descartar a medida no Brasil.

O motivo encontrasse na aplicação razoável e justa do direito para todos os cidadãos de forma a respeitar a igualdade e outros princípios constitucionais. Como eu vou tratar de forma igual, com um cadastro absurdo, pessoas que são completamente diferentes, que seriam você e um integrante de uma torcida organizada.

Contudo não quero falar sobre a inconstitucionalidade dessa medida e muito menos sobre outras medidas para o combate à violência. Prefiro expressar o absurdo de outra forma. O que será feito em breve. Está em gestação.

Adalberto Pereira

Vômito

A carne, cebola e tomate pulsam em minha garganta. Querem sair, falar. Eu seguro. Engulo. Corro até o banheiro, mas no meio do caminho o vômito explode pelas minhas narinas. Forte. Jato. Ácido, azedo. Suja toda a porta. Quando chego até a privada não sobra quase nada. Sim. Vomito. Palavras. Escritas. Pensadas. Vômito.

Adalberto Pereira

segunda-feira, 16 de março de 2009

Mão

Nem por prazer. Muito menos pela conquista. Se fosse pelo prazer bastaria acariciar minha rola, forte, pressionando, leve, com a ponta dos dedos, intenso, com a mão, só na cabeça, na base, forte, forte. Não. Não é pelo prazer.

Se fosse pela conquista poderia reconquistar a mesma mulher todas os dias. Todas as noites. As noites. As mulheres. Não é pela conquista.

Quero. Quero. Nem por prazer. Muito menos pela conquista. Encontro. Encotrado. Colidido. Não descola os lábios. Não tivemos uma palavra dita. Pode, não. Empurra. Não digo. Encosto. Colido. Quero. Quero. Nem por prazer. Muito menos pela conquista.

Quero. Quero. Despir sua pele. Não pelo prazer nem pela conquista. Saio a procura de mais uma vítima. Meus sentidos estão sensíveis. Pré-sinto. Sua pele em meu quadril, seus olhos, suas veias do pescoço saltadas, o seu ouvido. O seu ouvido será mordido, invadido por palavras, vís, baixas.

É pela vontade. O prazer de sentir prazer em despí-la. Um prazer que não é prazer, o prazer do prazer. Despí-la a alma, despí-la a intimidade.

Orfeu Bandeira

Fome

Tenho fome. Dirijo. Tenho fome. corro. Tenho fome. Troco o material higiênico do meu gato. Tenho fome. Alimento meu gato. Tenho fome. Tomo um whiskey. Tenho fome. Tenho Fome.

Tenho fome. Estudo, leio, escrevo, trabalho. Tenho fome. Escuto música. Tenho fome. Tenho fome.

O mendigo canta na esquina. Canta. Gruni. Gruniza. Grunido. Mendigo. Ele canta. Embriagado.

Temos fome. Eu tento durmir. Não consigo. Ele canta. Minha barriga acorda o mendigo. Acorda vizinho. Tenho fome.

Desço. Abraço. Cantamos. Gruni. Gruniza. Grunimos. Temos fome. Cantamos.

Adalberto Pereira

terça-feira, 10 de março de 2009

Ficção Inédita - Encontros na Península

Por Milton Hatoum

O ano é 1980: agosto, muito calor em Barcelona. E pencas de turistas barulhentos, como hordas de bárbaros vindos do Norte. Eu procurava um emprego naquele verão de jejuns forçados; ganhar pesetas com traduções era difícil, mas qualquer serviço seria bem-vindo: balconista de uma mercearia de Gracia, garçom no bairro Gótico ou nas tascas do velho porto mediterrâneo. Então o acaso saiu da sombra e o telefone tocou. Uma mulher havia lido um cartaz no Centro de Estudos Brasileiros: ensina-se português do Brasil. Victoria Soller queria aprender português. Fui vê-la no endereço que me deu: um apartamento num palacete modernista, travessa da avenida Diagonal.
Uma mocinha morena, alta e magra abriu a porta: Fique à vontade. O que deseja beber?
Água, respondi timidamente.
A sra. Soller já vem.
Na sala observei quadros de Miró e Antoni Tàpies e uma gravura do século 19 com a figura de Tirant lo Blanc no palco de uma batalha. Uma sala catalã. Daí a poucos minutos a sra. Soller apareceu: da minha altura, só um pouco mais magra que as mulheres de Monet. E mais bonita que as figuras femininas dos pintores impressionistas. Victoria quis saber quem era eu, e de onde era. Um estudante brasileiro, eu disse. Um ex-bolsista de um instituto de Madri. E acrescentei: Um escritor brasileiro inédito, à procura de um emprego.
Já tens um emprego, ela disse. E só porque és brasileiro.
A pátria me salvou neste verão, pensei. Picado de curiosidade, perguntei por que ela queria aprender o português falado no Brasil.
Não quero falar, ela disse com firmeza. Quero ler Machado de Assis.
Corrigi o que havia pensado: o sentimento íntimo do país me salvou a tempo.
E para impressionar minha futura aluna, eu disse em catalão: Molt bé. E por que a senhora quer ler Machado?
Sente-se, disse Victoria. Não é preciso me tratar por senhora. Quero que me indiques algumas obras de Machado. Os contos e romances que mais te impressionaram.
Victoria já havia adquirido as obras completas do Bruxo e os dicionários Caldas Aulete e Morais. Agora queria uma base gramatical e uma ajuda para traduzir certas expressões. Sugeri a minha aluna a leitura de dois romances e 18 contos de Machado. Quantas horas de aula por semana?
Duas tardes inteiras, respondeu.
Como Victoria pagava bem. Uma catalã de mão aberta. E que leitora. Durante o verão ela leu com zelo de tradutora 12 dos 18 contos indicados; no começo de setembro, fez uma pausa na leitura dos contos e duas semanas depois terminou as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Eu tentava tirar dúvidas de gramática e sintaxe, e também históricas: algumas datas importantes, esse e aquele ministério, nomes de personagens, políticos do Império e da República, ruas e lugares do Rio. No fim do outono, depois de ter lido e relido Dom Casmurro, ela comentou:
Já se vê que os narradores de Machado são terríveis, irônicos, geniais. E o homem era de fato culto. Cultíssimo, verdad? O século 19 francês é pródigo de grandes prosadores. Mas como Machado de Assis pode ter surgido no subúrbio do mundo?
Mistérios do subúrbio, eu disse. Ou, quem sabe, da literatura do subúrbio.
Que tipo de república é o Brasil hoje?, perguntou Victoria.
Uma república sinistra, uma ditadura.
Que lástima. Por sorte, Francisco Franco já faz parte do nosso passado, que não é menos sinistro. Os catalães o odiavam. Franco na Espanha, Salazar ao lado. Parece que vocês, latino-americanos, herdaram a alma desses déspotas.
Não sei se é uma herança de almas, talvez uma herança histórica, o passado colonial, eu disse. E então me encorajei e decidi aceitar uma taça do Rioja que ela me oferecera e estava bebendo.
Mejor así, verdad?
Así como?, perguntei.
Con vino, professor, ela disse, sorrindo.
Por supuesto. Mas por que tu te interessas tanto por Machado?
Ela ficou séria e me encarou com os olhos grandes, da cor de açafrão. Desviei meu olhar e observei num relance os ombros quase nus, mais claros que o açafrão.
Queres mesmo saber? Por causa de Soares, meu amante português.
É professor de literatura brasileira?
Não, mas é louco por Eça de Queirós. Ele disse que Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances do escritor português. Não sei se isso é verdade; sei que Soares não se conforma com essas críticas, e até ficou exaltado quando perguntou: por que a dor física e a miséria são menos aflitivas que a dor moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça é muito superior a Machado, que é o maior escritor brasileiro. Por isso eu quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes. Agora só falta dissipar uma dúvida. Dúvida de leitora apaixonada.
Não entendi se ela se referia à obra de Machado ou ao resíduo da paixão recente. Esvaziou uma taça com um gole prolongado e nervoso, depois abriu e fechou várias vezes o livro Papéis Avulsos, como se procurasse algum segredo dentro do volume de capa dura; com esse gesto impaciente, um lápis caiu no chão. Victoria se curvou para pegá-lo. Fingi não olhar para o decote da blusa azul, um decote em V, em cujo vértice brilhava uma flecha bordada. Meu fingimento foi desastroso, porque ela sorriu ao fisgar meu olhar indiscreto e eu acabei tomando um gole ainda mais prolongado e nervoso.
Ficamos uns segundos em silêncio. Eu ainda lamentava minha indiscrição, mas esse lamento foi substituído pelo ciúme que senti de Soares.
Acabo de enterrar nossa história, confessou Victoria. Ontem mesmo enviei uma carta para o Soares; escrevi que ele não sabe ler, porque já havia lhe dito que não sabe amar.
Terminaram? Quero dizer, não são mais amantes?, perguntei, ansioso.
Ouça a minha história, disse Victoria. Em janeiro eu viajei para o Algarve e passei uns dias em Lisboa. Quando saía do Palácio da Ajuda, um homem me abordou para contar a história do palácio. Enquanto ele falava, eu reparava o homem. Nem alto nem baixo, roupa simples, um lisboeta mediano. Mas que olhos, e que olhar. Uma viúva recebe um olhar assim e sonha. Eu sonhei. E esqueci o palácio, a Nossa Senhora da Ajuda, as belezas de Lisboa. Esse encontro foi no fim da manhã. Almoçamos no Chiado, próximo ao hotel onde eu estava hospedada. Falei de mim, da minha viuvez que ia completar três anos, falei de Barcelona e da Catalunha. Ele falou de literatura: era um leitor compulsivo. E o que fazia na vida? Leio, ele disse. Consegui um emprego que me permite ler a maior parte do tempo. Bibliotecário? Nada disso: cuido de uma dama. Ganho mal, mas hoje posso provar que Eça é mais talentoso que Machado.
Eu conhecia alguma coisa de Eça, mas nada de Machado, prosseguiu Victoria. Antes da sobremesa, Soares me disse que Machado só escrevia sobre adúlteros e loucos, era um imitador vulgar de Sterne, Shakespeare, Almeida Garrett e alguns franceses. Faltava-lhe a visão crítica da sociedade, do país, uma visão que Eça esbanjava. Além disso, o tom filosofante, voltairiano, dava a Machado um ar pretensioso, puro complexo de colonizado. Teve a pretensão de ser um iluminista nos trópicos. Pretensão fracassada, claro. E ainda inventou narradores que parecem rir de tudo: do leitor, de si próprio, de Deus e até do diabo. Um brasileiro pedante, um cultor de galhofas, disse Soares a Victoria.
Victoria encheu as duas taças e continuou:
Fiquei impressionada com o tom da voz de Soares. Cheguei a pensar que Machado não era apenas um autor, mas também um inimigo. Defunto, mesmo assim, inimigo. Pois bem, o namoro começou naquela tarde. Não vou contar detalhes. Qual é a tua idade?
Vinte e oito.
Um jovem, mas nessa idade já deves ter amado e sofrido. Eu, aos 36, só havia amado um homem e esse homem morreu jovem. Soares foi meu segundo amante. Nós nos encontrávamos em Lisboa, sempre no mesmo hotel. Ele me telefonava toda semana e perguntava: Por que tu não vens tal dia? Eu ia de avião uma vez por mês, às vezes duas. Ele chegava ao hotel na hora do almoço. Comida frugal, porque nosso banquete era na cama. Ele ia embora antes de escurecer. Nunca dormimos juntos porque ele lia à noite para uma mulher.
Um enfermeiro noturno?
Já vais saber, disse Victoria. Soares não me contou mais nada de sua vida. Lia e cuidava de uma dama. Isso era tudo. Às vezes eu achava que ele ia enlouquecer de tanto comparar Eça com Machado; ou que não cuidava de ninguém e só lia a obra dos dois rivais. Uma tarde de maio, antes de sair do hotel ele me beijou e acariciou com tanta volúpia que adiamos a nossa despedida. Foi a tarde mais ardorosa dos nossos encontros. Pensei em alugar este apartamento e me mudar para Lisboa; poderia ter sido a decisão de uma vida, mas foi uma fantasia de minutos. Ou nem isso. O coração humano é mesmo uma caixa de mistérios. Quando Soares saiu, eu o vi da janela do hotel; enquanto ele andava, eu me despedia da Catalunha, sonhando com a vida em Lisboa. Olhava para ele, embebida de desejo e felicidade, que são graças gratuitas. Até cantarolei na minha língua uma canção de amor catalã. Então ele parou e se curvou para um mendigo sentado na calçada. Meu amante tirou do bolso uma moeda, jogou-a para o alto e, quando o cobre ia cair nas mãos estendidas, Soares agarrou a esmola e deu uma gargalhada. O mendigo tomou um susto, os braços dele caíram. Soares enfiou a moeda no bolso, e apressou o passo, balançando a cabeça; talvez cantasse. Eu, que cantarolava, emudeci. Pensei: qual é o segredo desse homem? Quando ele me telefonou numa quarta-feira de junho, marquei um encontro no domingo daquela semana. Ele gaguejou, disfarçou, disse que domingo era um dia ruim. E repetiu: um dia muito ruim. Parei de insistir e ameacei: domingo ou nunca mais. Ele concordou. Quem pode com uma catalã? No domingo, Soares almoçou calado e não quis ir para a cama. Quer dizer, fomos para a cama, mas ele dormiu, roncou. Eu tinha atravessado a península Ibérica para escutar o ronco de um amante e esse amante acordou assustado, vestiu-se às pressas, me beijou às pressas e foi embora. Fingi que ia ao aeroporto e segui Soares de longe. Eu me senti ridícula, rebaixada. Ele parou diante de uma casa em Alfama. Havia alguma reunião lá dentro. Três mulheres de preto entraram na casa, e eu fui atrás delas. A sala estava cheia de gente, podia ser um velório, mas era um aniversário. Cantaram parabéns, depois os convidados cumprimentaram uma mulher sentada, toda de preto. Soares não estranhou minha presença. Ao contrário, fez festa quando me viu, e me apresentou à aniversariante, que permaneceu sentada, o colo coberto por uma manta escura. Soares disse: Augusta, esta é Victoria Soller, minha professora de espanhol. Victoria, falei muito de si à minha esposa. E depois de dizer isso, ele se ajoelhou e beijou o rosto da mulher. Um beijo demorado, tão demorado que ele teve tempo de me olhar com uma expressão cínica, voraz, de prazer mórbido. Olhar de um louco. Eu mal conseguia respirar. As pessoas falavam comigo, eu não ouvia nada. Minha rival era uma mulher idosa, mais velha que ele. Só então percebi que Augusta estava sentada numa cadeira de rodas e segurava um terço. Ela fez um sinal: queria falar comigo. Eu me curvei e ela cochichou estas palavras no meu ouvido: Ensine meu marido a amar, nem que seja em espanhol. Soares concordou, rindo, como se tivesse escutado. Saí de lá chorando, e amaldiçoei aquele homem.
Victoria levou a taça à boca e me olhou com apreensão; não enxugou os lábios que o vinho avermelhara ainda mais. O rosto dela quase tocou o meu quando disse em voz baixa:
Agora quero encontrar aquele louco nas páginas de Machado. Mas em qual conto ou romance? Tu sabes, professor?
Milton Hatoum é escritor, autor do romance Dois Irmãos e da novela Órfãos do Eldorado. Encontros na Península é um dos 13 contos de A Cidade Ilhada, livro que a Companhia das Letras lança no fim do mês.

Prosaico - rascunho

Desisto de ser advogado até segunda-feira. Desço o elevador e vou em direção ao ponto de ônibus. O trânsito mostra-se caôtico. Quando chego na avenida tudo para. Nada se movimento. O ar, parado, me pressiona em seu calor melado.

Decido ir andando até meu apartamento. Uma caminhada de quarenta minutos não me faria mal. Só ficaria um pouco suado, mas poderia aproveitar para começar a esquecer as coisas mais estúpidas de nosso cotidiano.

Contudo, a caminhada seria um obstáculo. Assim que desliguei o computador havia começado a imaginar um ou dois contos. Nunca se sabe ao acerto. De qualquer forma, começo a vislumbrar possibilidades. Não conseguiria escrever andando. Nem no Blackberry, muito menos em um papel. Cansei de torcer o pé nos buracos das calçadas. Memorizo as ideias principais. Me concentro. E repito initerruptamente o desenrolar dos acontecimentos.

De repente, tenho a brilhante ideia de ligar para um amigo que ainda trabalha. Meu caro, faço um favor, anote o seguinte: Em um pequeno Bistrô renunciava a toda psicologia. Impressionante como toda vez que o encontrava esquecia que era seu pai. Despois, tudo voltava ao normal, mas enquanto falava era uma conversa viva, intensa. Não sabia se essa era uma forma de perdoá-lo pela ausência, pois na verdade, para ele sua rara presença nunca fora um problema. Seu silêncio e sua imagem sempre foram muito fortes, significantes. Sempre conversaram sobre política, pesquisa e economia. Seu pai sempre destacou a China. A China o impressionava. Falava sobre a China no contexto de desglobalização (??) e sobre a idade das trevas. E o incentivava a estudadar mandarim. Ele, por outro lado, o lembrava que aqueles que gozavam com essa ditadura, tinham sido os mesmos que criaram a crise dos papelotes, de cocaína e de crédito podre. O lembrava que ninguém havia explicado, até hoje, o motivo da estagnação econômica japonesa de uma forma convincente, o real motivo. Não hipóteses meramente verossímeis. E, reforçava, de forma sentimental, traindo seu despreendimento, que ele havia lhe ensinado a ser ácido e crítico até mesmo em situações tão óbvias....

Man, de que se trata isso? Você quer escrever uma carta ao seu velho? Nada disso, tive uma idéia. E você quer que eu transcreva um conto? Não apenas algumas frases para que ele não se perca, você sabe como são os sonhos, os devaneios. São nove horas da noite, você pode deixar um recado na minha caixa postal com suas alucinações depois eu passo a senha. Está bem.

Repasso cada uma das ideias mais uma vez e enxergo as pessoas paradas no ponto. Todas infelizes. Olham para um horizonte que não se move e paradas esperam por um ônibus que nunca chegará. Quando percebo que atrás desse ponto encontra-se um pequeno boteco. Algumas pessoas riem e tomam cerveja, não há melhor forma para esquecer as coisas mais estúpidas de nosso cotidiano do que a cerveja.

O movimento começa a me incomodar. Ou a ausência dele. Enfim, tudo está sempre em movimento, sabemos disso, mesmo quando parados. Não conseguimos. Precisamos estar em movimento. Precisamos do movimento. Mesmo parado no trânsito, mudamos a estação do rádio, ligamos para um amigo do celular, prestamos a atenção nos motoristas a nossa volta. Todos neuróticos.

Ao chegar na esquina, não consigo me mexer, o sinal fecha e todos os pedrestes passam. Eu fico, finco. Percebo que para continuar terei que voltar para aquele bar.

Adalberto Pereira

Versão

Me diziam que seria pobre.
Todas as formas de se frustar me passavam pela mente.

O reconhecimento,
nem com a morte,
nem dos amigos mais próximos.

Entoaram ao vento.
Cantaram o meu fracasso.
Tudo em vão.

Sem consentimento.
Me tornei,
advogado por opção,
poeta por ser obrigado.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Jânio de Freitas - Ditadura

JANIO DE FREITAS História à brasileira
Historiadores à brasileira não sabem que ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem
UMA VERGONHA , ao menos uma, o Brasil tem. É um tal de esconder ou falsificar a própria história, que este vício passa, ele próprio, a ser história. Só agora, passados 70 anos, liberam-se atas de reuniões do Conselho de Segurança Nacional da década de 30 -mas depois de extirpar-lhes mais de 400 linhas. As linhas encobertas são os esconderijos das verdades que mais importam para o conhecimento das posições, circunstâncias e decisões do momento em questão.Na entrega das atas, que vão de 1935 a 88, o seu guardião nos últimos anos, ministro de Segurança Institucional, general Jorge Felix, deu a justificativa oficial para os vetos: "Os povos são muito emocionais. Poderíamos ter constrangimentos com países vizinhos por declarações feitas nos anos 30". Na prática, desde então são passadas três gerações. Como os demais países, o Brasil atual pode, eventualmente, explicar declarações (no caso, em reuniões fechadas) do passado, pode desautorizá-las, mas não pode responder por elas. Mesmo que expressem, mais do que opiniões pessoais, propósitos hostis. Como foi o caso do ministro da Justiça que propôs, na década de 60, a criação de um episódio bélico com o Paraguai (começava o assunto Itaipu), como pretenso recurso para unir a opinião pública brasileira em torno dos militares.Os aspectos mais decisivos no desencadear do golpe de 64 tornam-se progressivamente disponíveis graças à abertura de arquivos dos Estados Unidos. O embaixador Lincoln Gordon, até hoje vendido aqui como pessoa íntegra e bem intencionada em relação ao Brasil, já em seu primeiro encontro com Kennedy, na Casa Branca, propôs um golpe aqui. Isso se sabe por recentes liberações de documentos nos EUA, onde já o governo Kennedy está escancarado e até material do pequeno Bush começa a estar ao alcance público.O que já era o cofre inexpugnável da documentação brasileira, ganhou de Fernando Henrique um reforço de obscurantismo estarrecedor. O "intelectual príncipe da sociologia" passou a duração do sigilo de documentos oficiais, de 20, 30 anos, para três gerações nos casos mais brandos e, em outros, até a infinidade dos tempos. Já no governo Lula, Fernando Henrique quis explicar-se com a afirmação de que assinou o ato "sem medir as consequências".Esquecido do que disse então, Fernando Henrique traz nova narrativa, reproduzida por Fernanda Krakovics e Luiza Damé no "Globo": assinou o decreto como ato "de rotina", ao recebê-lo "da secretaria que tratava de assuntos militares", o que caracterizou, "seja um descuido burocrático, seja má-fé de alguém não especificado".Não especificado? Pois sim. O tempo não diminuiu a inverdade de Fernando Henrique para livrar a sua face comprometida como nenhuma outra. É grosseiramente claro que nenhum professor de sociologia, história ou afins deixaria de perceber as consequências óbvias da ampliação de sigilos documentais. Nem assinou como ato de "rotina" que, por descuido ou má-fé, o pegou desprevenido.Tão logo o decreto obscurantista foi divulgado, ex-colegas de Fernando Henrique na universidade e muitos outros, inclusive no exterior, reagiram pelos meios de comunicação. Se vítima de inadvertência, Fernando Henrique teria emitido novo ato, com a correção do anterior, como fez inúmeras vezes.Pressionado, Lula afinal se dispôs a alterar a regra de Fernando Henrique. Só, porém, para dizer que a alterara, porque até o sigilo infinito permaneceu.Não é por acaso que um professor universitário de história faça a afirmação, por exemplo, de que "não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural". Deu-se no artigo "Ditadura à brasileira", de Marco Antonio Villa, Folha de 5.mar.09.Os militares derrubam um governo constitucional, prendem aos milhares pelo país afora, cassam mandatos parlamentares legítimos nas três instâncias legislativas; impõem ao Congresso subjugado a escolha entre três ou quatro generais, para figurar como presidente; governam por ato institucional e decreto-lei; extinguem os partidos; excluem do serviço público, das autarquias e estatais os opositores reais ou supostos, e, para não ir mais longe, instituem a espionagem no país todo. E, fato muito esquecido hoje em dia, iniciam a tortura nos quartéis e os assassinatos. Início bem comprovado, por exemplo, pela foto de Gregório Bezerra puxado por corda no pescoço em Recife. Ou pela celebridade de pessoas como o capitão Zamith, acusado da morte por tortura de um estudante de medicina na Vila Militar do Rio (tema da edição mais importante, até hoje, de "Veja"), e do sargento Raimundo, torturado no Exército e jogado no rio em Porto Alegre, morto ou para morrer.Mas "não é possível chamar de ditadura" ao domínio do país por tal regime. Então só pode ser "a democracia" dos historiadores à brasileira. Até por ter "movimentação político-cultural", permitida entre 64-68 quando não incomodava o regime, servindo mesmo como válvula de escape, e reprimida com vigor quando incomodava.Os historiadores à brasileira não sabem que as ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem fazê-lo. A diferença entre elas não é a sua essência, nem a sua prática: é a medida do necessário.

Vegetariano

Bois inteiros, patos, galhinhas, porcos, camarões, lulas, cordeiros, javalis, rãs e outros muitos outros. Enfileirados. Me admiram. Me questionam em seus olhares. Vejo todos a minha frente enfileirados lado a lado. O cheiro de carne podre toma conta do ar. Percebo que cada um daqueles animais foram comidos por mim algum dia. Se por um a caso eu imagino uma lágrima escorrendo em um olho de algum deles, é por ter vislumbrado a possibilidade de me tornar vegetariano. Mas de forma pragmática, enxugo a lágrima. E com toda indiferença que o ser humano é capaz, me convenço de que é natural dos homens comer a carne de outros animais. É natural ser carnívoro, tanto quanto canibal.

Adalberto Pereira

sexta-feira, 6 de março de 2009

Arte morta

Arte morta
Arte morte.
Me agarro à árvore
a enchente passa.
Eu, árvore
ficamos, fincamos.

Rebanhos a deriva
residências...pobre jaguatirica.
A enxurrada!
Meus olhos, minhas lágrimas
tentam enxugar a enxurrada.
Enxuga enxurrada.

Eu, árvore
Ficamos, fincamos, fazemos
Arte morta.
Arte morte.
Arte até a morte.

Adalberto Pereira

Arte do silêncio

Mãos borboleteando.
Símbolos vibrantes
carentes de conceitos
não se confunde com o rígido
................................................do bucho cheio.

A palavra diz no não dizendo.
A palavra só emite o silêncio
que ecoa como conceito,
no enganar-se da mente.

O bucho cheio é conseqüência direta
do bom silêncio.
O ganhar das formas feito
chega no saciar do ronco
e causa estrondo, vácuo distenso.

Adalberto Pereira

Sábia esmola

Para muitos deve ser estranho
um mendigo possuir algo além da miséria.
Possuir infância, sentimentos e opiniões.
Mas os tenho, v i s c e r a l m e n t e.
abri mão de tudo na vida para continuar.
Deixei que me esvaziassem os bolsos,
não deixei que me esvaziassem
a alma.

Adalberto Pereira

Abdico

Cansei dos meus sonhos vís,
da minha biblioteca abarrotada,
deixei-os para trás.
Os psicólogos diriam que eu não suportei a pressão do mundo moderno e fugi,
os psiquiatras...
bem...estes nada diriam
me receitariam prozac
e cobrariam 500 reais por isso.

Adalberto Pereira

Prefácio

Pode não parecer,
mas estou ocupado.
Sou advogado por escolha
Poeta por ser obrigado.

Adalberto Pereira

Desconhecido

Não assim amor...

Hoje vai na marra,
vou te rasgar inteira.

Mor não! Por quê?

Geme, grita, xinga.

Não, não, não...
não faz assim.

Toma, toma, toma...

Agora, agora, agora...
goza, goza, goz...

Como? Nunca!
Será?

Uma castidade que atordoa,
irrita.

Mor me desculpa?
Foi só um sonho,
que me deixou
Com medo, nojo,
Excitado.

Mas foi só? um sonho...

Adalberto Pereira

Mestiça

Ainda me perturba em meus sonhos. Seus cabelos escuros cacheados e a pele branca. A encontrei em um bar qualquer a meia luz com uma música envolvente de fundo. A conversa fluiu desde colares até diretores de cinema. Básico. Sem fugir do padrão, mas também sem deixar de provocar meus instintos.

Chegamos ao motel. Logo chupo seus lábios, ela está entregue. Tiro sua blusa e passo o meu rosto inteiro pelos seus mamilos, até as orelhas. De tanto tesão ela nem se dá conta do meu êxtase, das minhas manias.

Começo a tirar sua calça colada em sua pele branca. Suas mãos macias me seguram. Sua boca fala e seus olhos já não brilham.

De alguma forma bizarra ela tenta me explicar que teria se depilado de uma maneira estranha e que não queria tirar a calça. Pensei de tudo. Que ela não gosta de trepar no primeiro encontro. Que ela não toma pílula e nunca imaginou que iria tão cedo para um motel. Conjecturas inúteis a parte. Continuei, insisti, ganhei um boquete, mas não fudi.

Encoxei aquela bunda durante horas. Horas. Gozei inúmeras vezes. Ela também, pois a dedava incesantemente. Não sentia nada de diferente em sua buceta, contudo a essas horas eu não me preocupava com a trepada perdida. Queria apenas gozar de alguma forma. Não importa qual, nem aonde. Se na sua calça ou na sua buceta.

Dormimos abraçados como antigo amantes. Agimos a noite inteira como antigos amantes. Acordo sem entender o que realmente teria acontecido. A levo para casa e nunca mais ligo. Odeio pessoas com manias piores que as minhas.

Orfeu Bandeira

Antropofagia

Romântico e visceral. Busca incessante pela conquista. Depois, friamente, devora e descarta. Um canibalismo amoroso. Os olhos brilham frente a próxima presa. Que lindo pescoço. Após comer as tripas deixa o cadáver ao relento e se pergunta se essa será sua natureza. Antropofágica.

Adalberto Pereira

quinta-feira, 5 de março de 2009

Covardes e putos

De fato somos. Eu e você. Gritando palavras românticas, ou de ódio, de forma juvenil. Dois covardes. E putos.

Adarlberto Pereira

Banco - Máfia

O UBS, que auxiliou e vendou formas de evadir tributos para milhares de Norte-Americanos, se recusou a passar os dados dos contribuintes que teriam participado do esquema.

Na Itália, a coisa vai mais longe e chega mais perto do Brasil. Com a escassez de recursos. O dinheiro sumiu. As empresas estão recorrendo à máfia, que teria emprestado uma fortuna a 200 mil empresas italianas. Até aqui, nenhuma novidade. Não fossem os juros cobrados que variam de 55% a 730% ao ano, portanto, menos do que o cobrado pelos bancos nacionais pelo uso de cheque especial para pessoa física (170% ao ano), conforme noticiou a matéria abaixo.

Conclusão. Os bancos brasileiros cobram taxas de juros mafiosas. Não em todas as operações, mas no cheque especial e no parcelamento de cartão de crédito os bancos brasileiros agem como, pior que, mafiosos na cobrança de encargos.

Além disso, esse bancos brasileiros que estão tão bem frente a uma crise mundial no mercado financeiro!!! Com certeza, possuem um lastro muito grande de recursos graças as taxas exorbitantes aqui cobradas. Vejam só. A sociedade como um todo pagou durante os últimos 14 anos a saúde financeira dos bancos, a qual se tornou tamanha, que nem a maior crise financeira já vista, que quebra sistemas financeiros inteiros, causa preocupação ou riscos.

É lógico que as limitações regulatórias, que impossibilitam os bancos nacionais de captarem recursos no país e investirem no exterior ajudou para que essas insituições não tivessem os ativos podres em suas carteiras.

De qualquer, a ineficiência regulatória do estado não pode ser utilizada como justificativa para encobertar o assalto em encargos que as instituições financeiras cobram, como se fossem mafiosos.

Adalberto Pereira


Italianos recorrem à máfia para obter crédito
DA REDAÇÃO
A crise global já derrubou a economia italiana para a maior recessão em pelo menos três décadas, mas, para a máfia, os problemas acabaram se tornando mais uma fonte de lucro.Com os bancos tornando o acesso ao crédito cada vez mais difícil, cresce o número de empresas que estão apelando a agiotas dos grupos mafiosos para conseguir dinheiro para financiar suas operações.No ano passado, 180 mil companhias italianas recorreram a empréstimos da máfia, somando 15 bilhões, sendo uma das atividades que mais renderam para os grupos criminosos, segundo levantamento da Confesercenti (que reúne pequenas empresas do país).Em 2007, quando financiamentos não eram tão difíceis de serem obtidos nas instituições financeiras do país, 150 mil empresas apelaram para o dinheiro da máfia."A crise econômica torna a máfia ainda mais perigosa", afirmou o presidente da Confesercenti, Marco Venturi. "Os negócios da máfia utilizam a fraqueza e a incerteza econômicas para fortalecer as suas posições. É necessário reagir com determinação."Não há dados estatísticos sobre os juros cobrados pelos agiotas, mas, nos casos denunciados no ano passado, variavam de 55% a 730% ao ano, com boa parte girando em torno de 120% -menos, portanto, do que o cobrado pelos bancos nacionais pelo uso de cheque especial para pessoa física (170% ao ano) em janeiro, segundo dados do BC. Já os juros médios no Brasil naquele mês ficaram em 42,4% ao ano,"Ao contrário de outros negócios, a máfia foi muito pouco afetada pelas crises econômica e financeira internacional", diz o estudo da associação de empresas. Com a economia italiana se retraindo nos últimos três trimestres do ano passado (fato que não tinha ocorrido na atual série histórica, iniciada em 1981), as empresas enfrentam dificuldades para manter seu ritmo de vendas -que são agravadas pela indisposição das instituições financeiras de conceder empréstimos.Para Roberto Saviano, autor do livro "Gomorra", sobre a Camorra, um dos principais grupos mafiosos italianos ao lado da 'Ndrangheta, da Cosa Nostra e da Sacra Corona Unita, "o mercado do crime nunca sofre durante a crise. Estou convencido de que esta crise está trazendo enormes vantagens para os sindicatos criminosos".
Com agências internacionais

Onde estão os putos?

Não sei. Talvez tenham ido para o carnaval e não voltaram. Seria lindo. Lúdico. Ir para o carnaval e se apaixonar. Não por uma mulher, que seria pouco. Mas pela vida. Não.

Estão escondidos atrás de gravatas ou com as cabeças muito pesadas. O peso da cachaça ou o peso da erva. Estão entretidos com estudos, leituras ou filmes.

O Oscar acabou de acontecer. Temos muitos filmes novos em cartaz. Poucos dizem coisas novas. Dizer no sentido cinemático, pois tudo já foi dito, só não foi dito na forma inovadora de filmar uma cena por aquele, ou o outro ângulo.

A libertadores. Começou. Mas só na quarta ou quinta. E está só no começo, como bem disse. O Paulista, sonolento, mas melhor que nos outros anos, completa a rodada, entretanto não ocupa tanto.

Onde estão os putos?

Os putos que estão cansados dessa mídia, desses jornais, desses políticos, dessa arte, dessa música ou de mim. Nem para me xingar os putos aparecem. A indiferença me preocupa. Não a indiferença comigo, mas com o mundo.

Tomará que os putos estejam ai pelo mundo. Seres-ai-no-mundo. Tomará que eu seja apenas um amigo distante que não sei muito bem o que acontece na vida dos outros.

Um dos putos está aqui. E se envolta desse espaço virtual tivesse uma mesa e garrafas de cerveja os outros também estariam.

Adalberto Pereira

Traição - Marcelo Rubens Paiva

http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva?title=traicao&more=1&c=1&tb=1&pb=1

por Marcelo Paiva, Seção: Crônica 00:36:33.

A crônica abaixo [ou seria um conto] foi publicada em seis partes em 2007, na minha coluna de sábado do Caderno 2 do Estadão. Foi um dos textos de maior recercussão que já escrevi. Muita gente me pergunta sobre ele até hoje. Ontem, um cara no Frans's Café [sim, eu adoro Fran's Café] me sugeriu postar na íntegra. Acatei. Senta que lá vem estória...

TRAIÇÃO

5:51. Ela abre os olhos devagar. Antes do despertador tocar. Está de lado, na cama. Observa o visor. Que acaba de mudar para:5:52. Escuta o silêncio da casa, da rua, da cidade. Um ar gelado envolve os seus braços. Ela os coloca debaixo do cobertor.5:53. Escuta a respiração do marido. Dorme pesado. Mas não ronca. Ele sempre dorme pesado. Como ela inveja os que dormem pesado, os que se deixam e dormem antes dela, os que dormem na posição em que se deitam, não sentem frio ou calor, não reclamam do colchão mole ou duro.5:54. Sempre, em toda a sua vida, desde que nasceu, ela dorme depois dos outros, dorme depois dos irmãos, dos primos e dos namorados. Tem dificuldades, deita-se e pensa, ainda durante um bom tempo, às vezes uma hora, às vezes mais, a insônia, a clássica insônia, é, ela demora, faz um balanço o dia, pensa nos amigos, nos planos. Nunca teve um cara que dormisse antes dela.5:55. Em viagem, então... Pode atravessar o Atlântico ou o Pacífico de olhos abertos, lendo ou assistindo aos filmes, chega no destino exausta e, na primeira noite, estranha tudo, o cheiro do quarto de hotel, o colchão, especialmente o travesseiro alto demais, a cama mais fria e impessoal, os ruídos do quarto, o frigobar que range, a água ou óleo que escorrem na calefação, estranha os ruídos da rua, da cidade, do país, da novidade, e não dorme.5:56. Nunca tomou remédios para dormir: tem medo de se viciar. Costuma-se viciar em remédios. Em antiinflamatório, quando teve uma bursite, experimentou todos eles, até o Vioxx, que foi tirado do mercado. É viciada em analgésicos para cólicas. Buscopan, o seu preferido. Em pingar gotas no nariz. Em colírio, na época que era “a” maconheira da faculdade. Por isso, nunca teve coragem de tomar remédio para dormir, pois sabe que corre o risco de ficar para o resto da vida dependente de mais um, um mais barra pesada até, tarja preta, daqueles que se obtêm com receita, e ela ficar para o resto da vida dependente de um médico que lhe dê receitas, todos os meses, teria de comprar estoques nas férias dele, teria de levar caixas nas suas férias, nas viagens em que ela cruzaria o Atlântico ou Pacífico.5:57. Homeopatia? Já tentou. Mas o médico disse que o seu problema era maior. Havia um desequilíbrio vital. Para ele, havia um triângulo que precisava ter os lados iguais. Um vértice é o da emoção. O outro, o da razão. Até aí, os gregos dividiram muito melhor: o apolíneo (equilíbrio e beleza) e o dionisíaco (inspiração e desinibição). O sábio, calculado, racional versus o espontâneo, instintivo, louco. Mas os homeopatas inventaram um terceiro? Sim, foi o que seu médico lhe disse, não bastavam as gotinhas para dormir, era preciso encontrar um equilíbrio entre as três partes de um todo: a razão, a emoção e o físico. Algo ligado à antroposofia. Era fé que ele queria dizer? É preciso ter fé na medicina homeopática? Acreditar nos efeitos das gotinhas ou nas bolinhas (comprimidinhos), como nas pílulas do Frei Galvão? Não há ciência na homeopatia?5:58. Então, na consulta de mais de uma hora, ele perguntou sobre os detalhes da vida dela. Físico? Fazia exercícios regulares. Pilates duas vezes por semana. Andava bastante. Corria aos fins de semana na praia. Nadava. Racional? Nem era preciso dizer: defendia a sua tese de mestrado em Lingüística Aplicada. Emocional, lúdico? Bem... Descobriu o desequilíbrio. Então, além das bolinhas, ele receitou pintura, isso mesmo, ela deveria trabalhar a parte do cérebro destinada às artes, à brincadeira, desenhar, ou pintar, ou bordar, ou cerzir um tapete de palha, algo que obrigasse o seu cérebro a não pensar, algo que a relaxaria, já que seus estados racional e físico se encontravam em estados plenos e bem desenvolvidos. Relaxada, ela dormiria. E ela só queria dormir, queria bolinhas mágicas. Comprou tintas, telas, espalhou tudo pela mesa da sala, começou aquilo que nunca tinha feito na vida, a pintar. Um vaso. Com flores. Verde. Fundo amarelo. Que flores? Ela só queria dormir, e tinha agora que decidir entre as cores do vaso, do fundo e das flores. Perdia o sono. Dois meses depois, com a ineficiência da terapia, ela jogou as bolinhas pelo ralo e presenteou o filho do zelador: tintas, papel, telas, até lápis de cor. Torceu para ele não pintar as paredes da escada de emergência, as colunas da garagem. Sobraria pra ela.5:59. Receitaram-lhe florais. Ela não tinha fé. Nem tentaria. Nem começaria. Seguiu todas as receitas unânimes: não tomar café depois do meio-dia, nem chás com cafeína, nem refrigerantes, não assistir à tevê antes de dormir, não fazer atividade física à noite, tomar um banho quente, relaxante, ler um livro... Nada. Sua insônia não tinha explicação. Era um carma que herdara injustamente de alguma injustiça cometida pelos seus ansestrais. Caramba, ela se deitara depois meia-noite. Até aos sábados era assim. Já tentou Maracugina, Serenus, maçã com mel, chá de erva cidreira, capim santo, meditação, jejum, massagem ayurvédica. E ele dormia ainda. Pesadamente. Bem, assim era para ser, já que, em toda a sua vida, ela só ficava com caras que tinham facilidade para dormir. Era das primeiras perguntas que fazia, antes de engatar uma relação: “Bem. Você dorme bem?” Se o cara falasse que tinha dificuldades, ela cortava no ato. Por quê? Porque não queria conviver com alguém fritando ao seu lado. Preferia os que a deixassem a sós com o seu pesadelo.6:00. Ela tinha erguido o dedo um segundo antes e desligado calculadamente o despertador. Ela sempre fazia isso. Odiava o alarme daquele despertador paraguaio. E sentia um prazer extra em conseguir desligar antes de ele chegar no 6:00. Era sua única vitória contra uma noite maldormida. Então, virou-se para o lado e: “Amor, acorda.Tá na hora.” Ele nem suspirou, nem bocejou, levantou-se da cama antes do relógio chegar no 6:01. Foi ao banheiro. Que ódio. Além de facilidade para dormir, ele tinha uma incrível facilidade para acordar. Mesmo num frio daquele. Ela ouviu o chuveiro ser ligado. Ele escovou os dentes enquanto esperava a água aquecer. Ela sentiu no ar aquele cheiro gostoso de pasta de dente. Depois, de xampu, sabonete: banho. Ela fechou os olhos.Como ela era apaixonada por ele... E se impressionava: mesmo dormindo, ele tinha um charme que o destacava. Transmitia aquela confiança que a deixava sempre emocionada e feliz por ter encontrado este cara para ser o pai do seu filho e, tomara, passar o resto da vida. E riu do caderno no criado mudo ao lado que, apesar de nunca ter sido preenchido, e do marido nem mais fazer terapia, continuava lá, com um lápis sobre, esperando um dia para, quem sabe, ganhar a narrativa de um sonho maluco (ou não). Se é que ele sonha.
6:13. Ela abriu a porta do quarto do filho, que dormia largado na cama, pernas apoiadas na parede, cabeça para fora do colchão, cobertor e travesseiros no chão, uma zona. Como crianças conseguem dormir daquele jeito? Nem sentia frio, nem nada. Dormia gostoso, largado, como um leopardo sobre um galho estreito. Ela foi até ele e o endireitou, colocou o travesseirinho, o cobertor. Puxou o pai, pensou. Grande. Precisamos comprar uma caminha maior, já não é aquele bebê.6:15. Abriu a porta e pegou o jornal no hall. Correndo. Para nenhum dos três vizinhos flagrar naqueles trajes e com os cabelos despenteados. Fazia isso até no verão, de camiseta ou toalha. Abria a porta correndo e, vupt, pegava o jornal e voava para dentro. Ficaria muito envergonhada se fosse pega. Ela gostava de correr o risco. Uma anarquia matinal. Para despertar com um irreverente bom-dia ao sol, ao frio, à vida.6:16. Sentou-se no sofá com a bandeja: uma água de coco, um queijo de Minas, uma fatia de mamão papaia e um iogurte com polpa de morango e cereais coloridos danito. Sim, ela sabe que já não tem idade para comer aquele iogurte cereais coloridos danito, que estava na hora de trocar por um natural, sem açúcar, glúten, cálcio, diet, light, 0% colesterol e semidesnatado, isto é, um pote de iogurte com nada dentro. Quando o médico a proibir na UTI, ao lado de um padre, aí, sim, ela pararia. Já parou o cigarro e os destilados. Por enquanto, deixa ela se lambuzar.
6:30. Deitada no sofá, parou de ler o jornal. Olhou a sala e se perguntou se não estava na hora de trocar os quadros de lugar, ou de fazer uma reforminha. Adora fazer uma reforminha, já trocou a pia do cozinha quatro vezes, ela implica com aquela pia. Não. Chega de reformas. Aquela casa está perfeita. Depois de 4 anos, sim, eles acertaram ali, os móveis, a estante, até a ordem dos livros, divididos como numa livraria: autores nacionais, estrangeiros, filosofia, história, turismo, psicologia, tudo seguindo uma ordem alfabética pelo sobrenome do autor. Claro que os de culinários estavam num armarinho charmoso na cozinha.6:31. Ligou o computador. Sim, aquela casa estava perfeita. Sentia-se bem ali. Aconchegante, charmosa, viva. Levou a bandeja para a cozinha e preparou o café do marido. Espiou o trânsito pela janela. Pena que tem que trabalhar. Ficaria o dia inteiro curtindo a sua casinha, cozinhando besteiras, lendo filosofia, ouvindo Lulu, Djavan, RPM...6:32. Ligou a água quente. Desligou a cafeteira.6:33. Checou os seus e-mails, enquanto a água esquentava. Spam, spam, spam... O irmão. Uma piadinha da amiga. Spam, spam, spam...6:34. O vapor da água a pairar pelo corredor. Viu as portas dos quartos fechadas. Ninguém à vista.6:35. Então, entrou no e-mail secreto que só ela sabe da existência. Ela e uma pessoa especial, que mora em Buenos Aires e vem a cada quatro meses. É difícil explicar. Ao abrir, suas mãos tremeram. Sim, ele enviou um. Sim, está na cidade. O coração disparou. Abriu a mensagem. “Hoje, 19h?”. Era só o que estava escrito. Não tinha “oiê”, nem nada mais, nem o endereço, porque ele sempre se hospedava no mesmo hotel. Ah, vá, não queira explicações. Ela pensou rápido. Hoje? Dá para fazer depilação e arrumar o cabelo na hora do almoço. Tudo certo, invento que tenho um curso à noite, que vou direto do trabalho. Curso? Palestra? Casa do Saber, Sempre um Papo, Instituto Moreira Salles... Com o mouse, ela foi no “responder” e clicou.6:36. Ai, que computador lento. Precisavam trocar de computador urgentemente. Então, na resposta, com a tela em branco, pensou mais um pouquinho e respondeu: “OK. Bj.” Quando olhou para o lado. Seu maridode banho tomado sorria, encostado na porta:“O que esta fazendo?”“Nada.”Ela desligou o computador. E ficou aflita. Pois não sabia se desligou antes ou depois de enviar o “OK. Bj.” E passaria então o dia com a dúvida.“Não desliga assim, pode desconfigurar a conecção.”“Desculpa. Sou tão atrapalhada...”“É nada. Só um pouco distraída.”“Não é a mesma coisa?”“Você precisa parar com isso.”O coração dela disparou. 6h40. Cedo demais para ser julgada?“Com o quê?”“Parar de aquecer o planeta. A água já está pelando.”“É que esse chuveiro demora para aquecer. Estou com tanta pressa”, ela disse e se levantou. Beijou o marido na boca. Um selinho matinal.“Você volta cedo?”“É que hoje à noite eu tenho um curso na Casa do Saber.”“Não vem nem pro jantar?”“Vou chegar tarde. Não me espere.” Então, olhou para os olhos dele e perguntou: “Tudo bem, né?”“Claro...”E foi para o chuveiro, sem responder à pergunta: “Curso sobre o quê?” Correu para o box, para decidir se ela precisava parar com aquilo e sobre o que era o curso.
6h43. Ficou um tempo imóvel debaixo da água pelando. Para se acalmar. E se perguntar se era justo o que ela acabou de armar. Por que fazia aquilo? Por que não começava também uma terapia.6h45. Só então pegou o sabonete e esfregou no corpo, esfregou muito, em todas as partes. Decidiu: não irá à depilação nem ao cabeleireiro. E deixará o tempo moldar a sua noite.7h05. Vestiu-se no quarto. Casual, pensou. Selecionou cuidadosamente a roupa de baixo. Vestiu uma calça preta, uma camisa branca, botas, a jaqueta jeans. Amarrou um lenço na cintura. Olhou-se no espelho, virou-se para um lado, para o outro, virou-se de costas e torceu a coluna para checar o ajuste da calça na bunda. OK. Parou de repente. O que você está fazendo, está se vestindo para ele!? Teve vontade de chorar. Teve vontade de sorrir. Afinal, ele estava na cidade. Alguém consegue chorar e sorrir ao mesmo tempo? Tirou o lenço da cintura e colocou um cinto neutro. Examinou-se de novo no espelho, perfil direito, esquerdo, costas. Então, viu o marido na porta, rindo, com uma caneca de café na mão.“Ai, que susto!”, ela reclamou.“Você não envelhece”, ele disse.“Odeio quando você diz isso.”“Estou te elogiando.”“Está me lembrando que um dia eu irei envelhecer.”“Um dia todos iremos envelhecer.”“Você entendeu o que eu quis dizer.”“Por que o mau humor? Eu fui sincero.”Ela vai até ele, passa a mão nos cabelos dele e dá um beijo na boca. A língua dele estava quente, com gosto de manhã e café. Uma delícia de beijo. Ela grudou nele, colou o seu corpo. Chegaram a cair na cama. Mas quando ele pensou em “ação”, ela pensou em “corta” e se levantou.“Você acha que um dia vou te trocar por uma universitária?”“Acho. Todos trocam.”7h10. Ela acordou o filho abraçando-o como querendo esmagá-lo. Ele reclamou do abraço.“Vai, filhão, papai já está te esperando.”“Eu não quero ir.”“Por que não?”“Quero dormir.”“Sábado e domingo você pode dormir até mais tarde. Dia de semana tem escola.”“Sábado e domingo não é dia de semana?”Indagador como o pai. Beijou-o em todos os cantos do seu rosto. Fez cócegas nele e tirou o cobertorzinho. Abriu a janela.7h23. Já na garagem, ligou o rádio do carro. Ouviu aquele solo de guitarra meio indiano, distorcido; inconfundível. Ela aumentou o volume, abriu o portão da garagem, saiu para a rua e cantou junto:
“Meu caminho é cada manhã, não procure saber onde estou, meu destino não é de ninguém, e eu não deixo os meus passos no chão. Se você não entende não vê, se não me vê não entende, não procure saber onde estou, se o meu jeito te surpre...”
Quase atropela um motoqueiro. Distraída ou atrapalhada? Ele xinga: “Tá louca?! Vaca!”8h10. Sentou-se na sua mesa. Que ódio. Ligou o computador. Checou no seu e-mail secreto. “Hoje, 19h?” Era só o que estava escrito. Nenhuma saudação. Nem o endereço. Porque ele sempre se hospedava no mesmo hotel. Ela pensou em responder novamente. Mesmo ciente de que duas respostas, se é que a primeira fora enviada, apontaria ansiedade. E ela sabe muito bem que, no jogo da corte, o que importa é a sutileza. Ela responderia com o mesmo texto da primeira: “OK.” Digitou. Não se lembrava se na primeira escreveu “Bj” além do “OK”.“Que inferno!”, murmurou. Porque então ele receberia duas respostas com dois textos diferentes. Se estivessem iguais, a culpa cairia sobre o provedor, que, estranhamente, como são os mistérios da internet, mandou duas vezes o mesmo texto em horários diferentes.“Calma, mulher! Esquece essa história!” Foi pegar um café.
8h21. Voltou para a mesa. Buscou no site da Casa do Saber os cursos daquela noite. Filosofia, psicologia, cinema, teatro, religião, temas contemporâneos. Fixou o ponteiro do mouse no ícone do curso A Paixão e o Crime - De Euclides Da Cunha a Pimenta Neves. Palestrante: Luiza Nagib Eluf. “Estudo de casos de crimes passionais célebres, que ocorreram no Brasil a partir de Euclides da Cunha até Pimenta Neves, sob a ótica social e de gênero.” Não, não, não. Nada disso.8h46. Foi pegar outro café. Imaginou como o marido a mataria, com uma arma ou uma faca? Aquele lá não mata nem uma mosca. Passivo demais. E como ela o mataria? Não, ela não o mataria, mas sim a outra, se houvesse. Ela estava uma pilha. Devia é fazer um curso de psicanálise.8h55. Voltou para o computador. Notou o curso Freud e a Sexualidade, de Mario Costa Pereira. Agora sim. Clicou no ícone. Checou datas. Teria que ligar para se inscrever. Sim, se era para ser tudo perfeito, teria até de se inscrever de verdade. Quem sabe até assistir a alguns minutinhos do curso. Mas sair logo depois de iniciada a palestra. Costa Pereira ficaria chocado com aquela mulher audaciosa ir embora no começo de uma exposição sobre Freud, para encontrar um amante de fora que vem a cada quatro meses. Interna, decretaria. Nossa, se internassem todas as mulheres que têm um caso eventual...9h00. Correu para a reunião. Prestou atenção? Em nada. Caso eventual. Que horrível expressão, pensou. É um caso eventual, mas não é. Perguntou-se se deveria ou não o encontrar. Por que fazia aquilo, a adrenalina comandava o seu dia, havia uma mescla de sofrimento e expectativa, a ansiedade se moldava com os ponteiros do relógio, minuto a minuto, a idéia de ir ou não ir era seu único pensamento. Levaria o dia como se fosse ao encontro. Na última hora, decidiria. Era isso que atraía?10h13. Ligou para a Casa do Saber. Inscreveu-se num curso de ciência, de dois encontros: LHC - Em Busca Da Partícula De Deus. De Maria Cristina Batoni Abdalla.10h44. Recebeu um telefonema do marido. Confirmou que iria ter um curso à noite sobre o LHC, Large Hadron Collider, o acelerador de partículas construído na fronteira da França com a Suíça. O marido perguntou desde quanto ela se interessava por Física. Ela contou que o funcionamento do LHC propiciará uma quantidade imensa de novas tecnologias, da internet às de imagem usadas na medicina, como terapias de combate ao câncer. Foi o que ela leu no site.“Os resultados das experiências ajudarão a desvendar a constituição íntima da matéria, o que pode mudar a compreensão sobre o funcionamento do Universo e atestar a existência da última partícula elementar cuja existência ainda precisa ser comprovada, a ‘bóson de higgs’, que exerce papel-chave na explicação das origens da massa de outras partículas, a ponto de ser chamada de ‘a partícula de Deus’. Sim, vão ter trechos de filmes.”“A partícula de Deus?”“Não é lindo?”“Você vem para jantar?”“Não. Como por aqui mesmo.”“Tá, se eu estiver dormindo, quando você chegar, não se esqueça de uma coisa.”“Do quê?”“De que eu te amo.”“Ai, amor... Eu também. Beijos.”Desligou. Não conseguiu trabalhar. Passeou com o mouse pela tela.11h55. Respondeu o e-mail: “OK. Bj.” Ligou para o salão. Reservou um horário para às 17h. Cortar as pontas. Só. Sem depilação, unhas, nada.12h00. Desceu para o almoço. Mas antes de entrar no natural em que vai todos os dias, cruzou a rua, entrou na farmácia. Pegou uma cestinha. Percorreu as gôndolas. Pegou escova de dente para o filho, fio dental para toda a família, Buscopan para ela, Sinvastatina para abaixar o colesterol do marido, que sempre esquece de tomar. Cheirou um creme hidratante novo.
12h19. Foi para a fila do caixa. Na sua vez, olhou bem ao redor. Ninguém conhecido. Examinou a prateleira ao lado. Lubrificada, não lubrificada, extra, com espermicida? Large. Action. Sensitive. Lite. Riu. Por que usam termos em inglês, para descrever as qualidades dos preservativos? Colocou na cesta o lubrificado testados um a um eletronicamente, que mantém a sensibilidade natural, transparente, com látex e reservatório. Um envelope com três unidades. Colocou a cesta no balcão. Deixou ao lado o seu cartão eletrônico.Pegou uma bala de mel. E decidiu pegar outro envelope de 3 unidades. É melhor garantir. Nunca se sabe. Uma mão encostou no seu ombro.“Que coincidência.”A voz familiar do seu cunhado, irmão gêmeo do marido, que também trabalha na área. Não podia lhe dar a mão, pois segurava a embalagem de três preservativos lubrificado testados um a um eletronicamente, que mantêm a sensibilidade natural, com látex e reservatório.“O que você está comprando?”“Nada”, ela disse e devolveu o envelope para a prateleira.“Nada?”, ele estranhou e olhou para a cesta no balcão com escova, fio dental, remédios e preservativos.“Crédito ou débito?”, perguntou a caixa.“É da minha amiga. Ué, aonde ela se meteu?”E saiu pela farmácia, procurando a amiga.“Neide? Neide?”Correu pelos corredores, gôndolas, Dipirona Sódica, cestinhas, cremes, pastas, escovas de dente, alicates de unha, Advil, vitaminas. Derrubou uma pilha de esparadrapos e microporos, agachou-se para pegá-los, respirou fundo. Tonta. Permaneceu por instantes escondida, selecionando os impermeáveis. Recolocou os esparadrapos na estante, levantou-se. Seu cunhado apareceu.“Tudo bem?”“Minha amiga sumiu.”“Sumiu? E agora?”“O que você está fazendo aqui?”“Estou no meu horário de almoço.”“Eu também.”“Vamos almoçar juntos?”, ele convidou.“Tem a minha amiga.”“Ela sumiu. Vamos. Só nós dois. Nunca ficamos a sós. A gente fala mal da família toda.”Ela riu. Gostava dele. Muitas vezes, ela perguntou de brincadeira se ele não era o gêmeo com quem deveria ter se casado. Era bem mais bonito do que o marido. Mais culto. Divertido. Gostava das coisas boas da vida. Jantar fora. Viajar. Touro, como o marido. Mas tão diferente. Porém, um pequeno detalhe encerrava o projeto platônico: ele era gay.“Claro. Vamos almoçar. Tem um natural aqui...”“Pra beber alface batido com agrião?”, ele interrompeu e fez uma divertida cara de nojo. “Vamos naquele italiano da esquina. E tomamos um vinho.”“Boa. Vamos lá então.”“Toma. O seu cartão eletrônico. Você esqueceu no balcão.”12h22. Brindaram duas taças de um rose gelado. Ele era gentil. Explicou que o rose perdeu o estigma e se tornava uma opção. Escolheu as entradas. Então, confessou algo. Estranho, pois nunca tinham trocado intimidades. Que ele estava apaixonado. Que encontrou um cara para casar. Um arquiteto lindo, carioca. Que é o homem da vida dele. Mas entrou num mar com correntes traiçoeiras. Que, apesar de estar amando, não conseguia deixar de paquerar outros caras. Que ficou muitos anos solteiro, na galinhagem, tem muitos rolos, paqueras, ex-casos, ex-namorados, médico, dois psicólogos, policiais militares, um vereador de direita, um jogador da Série A, que, como faria agora, eliminaria todo esse círculo vicioso, para se dedicar a um cara só?12h31. Chegou a comida. Penne ao pesto, para ele, com camarão e legumes, para ela. Continuou. Que curtia a galinhagem, mas um homem daquele exigia o compromisso com a fidelidade, e o que é trair, afinal? Tinha medo de sentir falta da liberdade. Tinha medo de amar aquele homem e ser abandonado. Tinha medo de morrer só. De ficar velho, gordo, careca, com nariz e orelhas grandes e só. Então, passou a falar do irmão gêmeo, de como invejava a vida planejada do irmão, que sabe quanto vai ganhar daqui a cinco anos, da dedicação com o filho e a mulher, de parecer não ter conflitos nauseantes, dilemas sem solução. Que preferia ser o irmão a sofrer tudo o que ele sofre com as suas indecisões e a ilusão de que há algo melhor atrás do planejado. E perguntou se ela tem vontade de trair.“Eu? Ah... Sei lá. Trabalho tanto.”“Claro que, às vezes, você sente atração por outro cara.”“Normal.”“Que tipo de cara?”“Um bem diferente.”Riram.“Vocês são fiéis um ao outro? Está na cara.”“Você acha?”“Não existe casal tão apaixonado. O casal perfeito.”“Não existe casal perfeito.”“É. Ninguém é fiel”, ele disse e riu, olhando com seu olhar penetrante, que atordoa e seduz até porteiro de boate.“Ele não é fiel?”“Meu irmão? Olha, eu até te diria, se soubesse. Mas aquele lá é um mistério...”Racharam uma torta de maçã com sorvete de canela e falaram mal da família. Ele tomou um curto, ela, um carioca. Ele pagou a conta. Gentleman.“Vamos marcar mais vezes. Adorei conversar com você”, ela disse, segurando mãos delicadas e bem cuidadas dele. “Quero conhecer o homem da sua vida.”“Deixa pra lá. É o homem da minha vida hoje. Não sei se será amanhã.”
13h07. Despediram-se na calçada. Ela acendeu um cigarro e esperou ele entrar no prédio de escritório da esquina. Então, voltou para a farmácia.13h09. Na farmácia, comprou uma paçoca natural, uma Coca e um envelope com três unidades de camisinhas lubrificadas testadas uma a uma eletronicamente, transparentes, com látex e reservatório, que mantêm a sensibilidade natural.13h21. Sentou-se no banco em frente para tomar a Coca e fumar outro cigarro. Ao lado, outros fumantes aproveitavam os últimos minutos da pausa do almoço, antes de voltarem ao maldito edifício em que é proibido fumar. Três advogados fumavam e falavam com ela, que mal prestava atenção. Gracejos. Cantadas inocentes. Tipo: “Ela nunca sairia para beber com a gente, porque não merecemos a sua companhia...” “É ocupada demais.” “No que tanto pensa?” “Aposto que é corintiana.” Aqueles três sempre a cantavam. Advogados do andar de cima. E quer apostar? Os três são casados com garotas lindas, bem vestidas, submissas. Submissas? Que mania de julgar sem conhecer. Preconceito, sabia? Ela se perguntou por que a maioria dos homens beija a esposa, sai de casa e canta mulheres na calçada, no trânsito, no metrô, no trabalho, na pausa do almoço, é um costume tribal? Auto-afirmação do macho alfa. Riu. Qual daqueles três advogadozinhos recém-formados, recém-casados, seria o macho alfa?13h29. E se eu for embora agora, entrar correndo naquele táxi, mandá-lo seguir pela Imigrantes, descer a serra até a praia, tirar a roupa, entrar no mar e sair nadando? Adorava pensar em atitudes intempestivas. Ela já foi tão louca anos atrás. A mais maluca. Quantas vezes não foi para a praia e voltou no mesmo dia, matando aula, estágio, trabalho? Saudades de ser volúvel! Saudades da vida.13h30. Sempre há algo melhor atrás do planejado? Despediu-se dos galanteadores com sorriso, apagou o cigarro, jogou fora a paçoca e a lata no lixo reciclado e subiu.Trabalhou sem parar. Desde o almoço. Quase como um surto, não viu a hora passar, planilhas e relatórios, várias janelas abertas no seu monitor, nem leu os e-mails, nem atendeu o telefone, nem tomou café. Até o celular no vibracall chamar a sua atenção às 17h20. Era do salão. Reservara o horário das 17h. Cortar as pontas. Esquecera-se completamente. Pediu mil desculpas. Consegue chegar em 40 minutos, dá?17h22. Salvou os seus arquivos, um por um, fechou as janelas. Desligou o computador. Olhou ao redor. Apesar do escritório estar apinhado, em horário de pico, ela nunca se sentiu tão só. São seus amigos. Seus colegas. Trabalham “na casa”, como chamam a empresa, com sinergia e transparência. Mas, no fundo, são apenas colegas. Ninguém teria tempo para escutar o dilema que queima o seu estômago desde quando acordou. Nem os três advogados do andar de cima.17h24. Pegou um café num copo descartável da máquina e saiu à francesa.18h03. Sentada diante do espelho, coberta por um pano preto, com o logo do salão impresso no peito, olhou para Jonas, o seu cabeleireiro, e teve vontade de chorar. Ele transmitia confiança. Desde a adolescência, fazia o seu cabelo. Fez na sua formatura e no seu casamento. Mas Jonas e todos pareciam ocupados. Corriam. “Só as pontas, amor”. E sorriu sem graça.18h41. Parou no estacionamento credenciado da Rua Mário Ferraz. Olhou o aviso: 24 HORAS. Guardou o recibo.
18h45. Pagou o curso da Casa do Saber. Pegou o recibo e a apostila. Circulou pelas estantes. Folheou um livro sem reparar no nome ou capa ou autor.18h50. Comeu um pão de queijo com um capuccino pequeno, no café da livraria. Acendeu o cigarro e olhou o relógio de parede avançar. 18h52. Tragou e não pensou em nada. 18h53. Bebericou. Tragou. 18h54. Tragou. 18h55. Não fez nada. 18h56. Tragou. 18h57. Não fez nada. 18h58. Bebeu, tragou e apagou o cigarro. Fechou os olhos, respirou uma, duas, três... Levantou-se às 19h em ponto.19h01. Entrou num táxi. Retocou a maquiagem e meteu na boca uma balinha de hortelã. Sorriu. “Pode aumentar o rádio?”, pediu ao motorista. Começou a cantar junto, baixinho: “Eu só queria te contar, que eu fui lá fora e vi dois sois num dia e a vida que ardia sem explicação. Explicação. Não tem explicação. Explicação. Sem explicação...” Ficou tão emocionada. Triste. O pôr-do-sol da primavera é vermelho. Cássia Eller morreu. O Ibirapuera está tão colorido.19h16. Bateu na porta do flat. Ele atendeu, sorriu. Ela entrou. Ele olhou para o corredor, para um lado, para o outro, e fechou.
23h39. Ela abriu a porta do quarto e saiu. Olhou na bolsa o celular desligado. Voltou para pegar na pia do banheiro o anel de prata, que sempre tira quando lava as mãos. Ele, esparramado nu na cama, dormia. Ela deu um tchau com a mão direita, sem falar nada.23h41. No corredor do flat, ligou o celular. Chamou o elevador. Olhou o visor do aparelho. A campainha do elevador tocou.23h42. Entrou e apertou o térreo. Ele desceu um andar e parou. Ficou apreensiva. Entrou um casal jovem, bêbado. Nem a cumprimentaram. Ela se encostou na parede e voltou a apertar o térreo, apesar da luz do botão estar acesa. Olhou o celular. Ainda nenhuma informação sobre mensagens de texto ou recados. O elevador fechou a porta. Reconheceu o rapaz que tentava beijar a garota: um dos advogados que trabalha no andar acima do seu escritório. Que agarrou a garota por trás e colocou as duas mãos nos peitos dela, que deu uma cotovelada na barriga dele. Ambos riram e olharam para a terceira passageira. Comportaram-se. Ele no canto, abraçando a sua garota por trás, que pediu:“Aperte o térreo.”“Já está.”“Obrigada.”O rapaz começou a beijar o pescoço da garota, que inclinou a cabeça.“Oi”, ele disse.“Oi”, ela respondeu.“Você conhece?”, perguntou a garota.“Não”, ele respondeu.Ela sentia como se quisessem ler os seus pensamentos. Alguém tem poderes para isso? Era como se ambos estivessem concentrados, esforçando-se para roubar os seus segredos. Como enxadristas russos. Ela abaixou a cabeça. Imaginou o que este garoto vai contar para todo o escritório. O aquela mulher, que fuma depois do almoço, fazia num flat?! Vai contar para todo o bairro. Ela olhou o visor do celular. O elevador desacelerou. Abriu a porta. Nenhuma mensagem de voz ou de texto. Ótimo. Será que estou desarrumada? Saiu num pulo.23h44. Olhou-se no espelho do hall. Só o cabelo desarrumado. “Me chama um táxi, por favor”, pediu ao segurança encostado na porta giratória. O cara apontou para o lado, onde um taxista com o seu táxi estacionado dormia no banco do motorista. Como são mal-educados. Ela odeia aquele flat. Vai sugerir, por e-mail, para ele se hospedar em outro lugar. Tantas opções na cidade. Ela ficou ao lado da porta traseira do carro, esperando o segurança abri-la. Mas o teimoso não o fez. Deu três tapinhas no capô, acordando o motorista que, ao vê-la, abriu a porta por dentro. “Mário Ferraz, por favor”, ela disse ao entrar. Sem querer, bateu a porta. O taxista olhou irritado. Deu a partida. Por que ela está de mau humor, perguntou-se? Deu tudo certo. Por que você sempre sai mal-humorada deste flat? Por que será?Tirou um espelho da bolsa e se penteou como pôde. Tirou um cigarro da bolsa. “Desculpe, mas não pode fumar”, o motorista deu o troco. Ela guardou o cigarro e pediu: “Pode aumentar a música?” Ele demorou, mas obedeceu. Ela cantou baixinho, junto: “Silêncio por favor, enquanto esqueço um pouco a dor no peito. Não diga nada sobre os meus defeitos. Eu não me lembro mais de quem me deixou assim. Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos...”Abriu a janela. Sentiu o vento úmido. Reparou que chovera muito. Enquanto ela estava trancada no quarto, rolou uma tempestade. Nem percebera. Poças, carros molhados, galhos caídos, faróis piscando no amarelo. Uma árvore caída interrompia o trânsito nos Jardins. Sentiu-se culpada: a cidade vivendo um caos, e ela num quarto de flat. “Porque hoje eu vou fazer, ao meu jeito eu vou fazer, um samba sobre o infinito...”0h15. Chegou no estacionamento em que deixara o carro, perto da Casa do Saber. Pagou o táxi. Acendeu um cigarro ainda no banco traseiro. Tragou com prazer. De repente, percebeu o portão do estacionamento trancado por um cadeado. Viu apenas o seu carro, solitário, no fundo do pátio. Desesperada, correu até a Casa do Saber, também fechada. Chamou o segurança da esquina.“Moço, meu carro ficou lá dentro!’“Está fechado.”“Fechado? Mas olha a placa, 24h HORAS.”“Fechado. Fecha à meia-noite. Às 24h”, e fez aquela cara que todo segurança faz, quando não pode ajudar.Então, desprotegida, ela começou a chorar. Encostou numa mureta e chorou muito. Ele pegou um celular-rádio. Atendeu o manobrista do estacionamento, já no ponto da Rebouças, esperando o busão para Taboão da Serra. Não adiantaria voltar e abrir o cadeado, o sistema de cobrança estava desligado. Ela voltou a chorar desesperada, enquanto o segurança tentava convencê-lo.0h27. Chegou o manobrista com a chave. Ela teve vontade de abraçá-lo, pular, dançar. Mas sorriu envergonhada, como se uma criança tivesse sido liberada de um castigo, depois de ouvir um sermão. Deu uma nota de R$ 50. Ele recusou. Pediu apenas que pagasse o valor de R$ 10; turno da noite.0h47. Ela entrou em casa sem fazer barulho. Deixou a apostila do curso que não fez da Casa do Saber sobre a mesa de jantar. Colocou água na chaleira. Correu para ver o filho. Ele dormia, com o abajur aceso e as pernas para fora da cama. Arrumou-o. Beijou todo o rosto. Arrumou a sua mochila, o criado-mudo. Começou a arrumar o seu armário. Ouviu a chaleira apitar.0h52. Ela bebia um chá verde. O gato entrou na cozinha. Não passou por entre as pernas dela, como sempre. Parou e se sentou no meio da cozinha. Ficou examinando-a, como se a repreendesse. Ela acendeu outro cigarro, colocou a ração no pote. Ele não saiu do lugar.
1h07. Já deveria ter saído do chuveiro pelando. Já se lavara, mas continuava, não tinha vontade de sair. Por ela, ficaria a vida toda debaixo daquele chuveiro, ensaboando-se repetidamente.1h19. Vestida com uma camisola creme de cetim, e sem acender a luz, ela se enfiou na cama delicadamente. Sentiu o colchão se mexendo. Olhou para o marido. Ele estava deitado, de olhos bem abertos, encarando-a.“Ai, que susto”, ela disse sem graça.“Tudo bem?”“Tudo. Boa noite, querido”, ela disse, beijou-lhe a testa e virou de lado, para ficar de costas para ele.“Eu te amo”, ele disse.“Eu também.”Silêncio. Será que dormiu? Não. Ele então perguntou:“Como foi a sua noite?”Que pergunta inusitada, desesperadamente fora de hora, por que acordou, por que não dormia pesadamente, roncando, sonhando, como na maioria das noites, por que estava concentrado, curioso? Ela fechou os olhos e respondeu:“Normal.”

Intifada

Pedras, garrafas de água, sacos de merda. Qualquer coisa. Esqueçam os princípios éticos e o respeito ao meio ambiente. Uma resposta direta e incisiva é necessária. Cada farol alto, cada pisca ligado. Desencoste o parachoque de mim. Não sou vagabunda para você encoxar dessa maneira.

Não importa o volume de tráfego. Sempre carros luxuosos acham que possuem um direito de passar por cima dos outros, que veio junto com a compra do carro, mais um dos acessórios.

Passavam. Agora, cada farol alto, cada sinal de pisca ou encoxada será devidamente retibuída: com uma pedra, garrafa de água ou sacos de merda, dependendo do meu humor.

O único se não é o filha da puta perder o controle do carro e ocasionar um acidente. Se a morte fosse só a dele, tudo bem. O problema seriam os outros veículos. Logo, faz-se necessário pensar e implementar uma tática de ataque cirúrgico, como aqueles que os EEUU ou Israel aplicam em suas guerras ou não.....

De qualquer forma, por via das dúvidas, comprarei umas garrafas de água a mais. Caso as concessionárioas continuem a se preocupar em cobrar pedágios e os Policiais Rodoviários a cobrar propina, terei que tomar as devidas medidas. Intifada!

Adalberto Pereira