terça-feira, 10 de março de 2009

Ficção Inédita - Encontros na Península

Por Milton Hatoum

O ano é 1980: agosto, muito calor em Barcelona. E pencas de turistas barulhentos, como hordas de bárbaros vindos do Norte. Eu procurava um emprego naquele verão de jejuns forçados; ganhar pesetas com traduções era difícil, mas qualquer serviço seria bem-vindo: balconista de uma mercearia de Gracia, garçom no bairro Gótico ou nas tascas do velho porto mediterrâneo. Então o acaso saiu da sombra e o telefone tocou. Uma mulher havia lido um cartaz no Centro de Estudos Brasileiros: ensina-se português do Brasil. Victoria Soller queria aprender português. Fui vê-la no endereço que me deu: um apartamento num palacete modernista, travessa da avenida Diagonal.
Uma mocinha morena, alta e magra abriu a porta: Fique à vontade. O que deseja beber?
Água, respondi timidamente.
A sra. Soller já vem.
Na sala observei quadros de Miró e Antoni Tàpies e uma gravura do século 19 com a figura de Tirant lo Blanc no palco de uma batalha. Uma sala catalã. Daí a poucos minutos a sra. Soller apareceu: da minha altura, só um pouco mais magra que as mulheres de Monet. E mais bonita que as figuras femininas dos pintores impressionistas. Victoria quis saber quem era eu, e de onde era. Um estudante brasileiro, eu disse. Um ex-bolsista de um instituto de Madri. E acrescentei: Um escritor brasileiro inédito, à procura de um emprego.
Já tens um emprego, ela disse. E só porque és brasileiro.
A pátria me salvou neste verão, pensei. Picado de curiosidade, perguntei por que ela queria aprender o português falado no Brasil.
Não quero falar, ela disse com firmeza. Quero ler Machado de Assis.
Corrigi o que havia pensado: o sentimento íntimo do país me salvou a tempo.
E para impressionar minha futura aluna, eu disse em catalão: Molt bé. E por que a senhora quer ler Machado?
Sente-se, disse Victoria. Não é preciso me tratar por senhora. Quero que me indiques algumas obras de Machado. Os contos e romances que mais te impressionaram.
Victoria já havia adquirido as obras completas do Bruxo e os dicionários Caldas Aulete e Morais. Agora queria uma base gramatical e uma ajuda para traduzir certas expressões. Sugeri a minha aluna a leitura de dois romances e 18 contos de Machado. Quantas horas de aula por semana?
Duas tardes inteiras, respondeu.
Como Victoria pagava bem. Uma catalã de mão aberta. E que leitora. Durante o verão ela leu com zelo de tradutora 12 dos 18 contos indicados; no começo de setembro, fez uma pausa na leitura dos contos e duas semanas depois terminou as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Eu tentava tirar dúvidas de gramática e sintaxe, e também históricas: algumas datas importantes, esse e aquele ministério, nomes de personagens, políticos do Império e da República, ruas e lugares do Rio. No fim do outono, depois de ter lido e relido Dom Casmurro, ela comentou:
Já se vê que os narradores de Machado são terríveis, irônicos, geniais. E o homem era de fato culto. Cultíssimo, verdad? O século 19 francês é pródigo de grandes prosadores. Mas como Machado de Assis pode ter surgido no subúrbio do mundo?
Mistérios do subúrbio, eu disse. Ou, quem sabe, da literatura do subúrbio.
Que tipo de república é o Brasil hoje?, perguntou Victoria.
Uma república sinistra, uma ditadura.
Que lástima. Por sorte, Francisco Franco já faz parte do nosso passado, que não é menos sinistro. Os catalães o odiavam. Franco na Espanha, Salazar ao lado. Parece que vocês, latino-americanos, herdaram a alma desses déspotas.
Não sei se é uma herança de almas, talvez uma herança histórica, o passado colonial, eu disse. E então me encorajei e decidi aceitar uma taça do Rioja que ela me oferecera e estava bebendo.
Mejor así, verdad?
Así como?, perguntei.
Con vino, professor, ela disse, sorrindo.
Por supuesto. Mas por que tu te interessas tanto por Machado?
Ela ficou séria e me encarou com os olhos grandes, da cor de açafrão. Desviei meu olhar e observei num relance os ombros quase nus, mais claros que o açafrão.
Queres mesmo saber? Por causa de Soares, meu amante português.
É professor de literatura brasileira?
Não, mas é louco por Eça de Queirós. Ele disse que Machado foi pérfido ao criticar cruelmente dois romances do escritor português. Não sei se isso é verdade; sei que Soares não se conforma com essas críticas, e até ficou exaltado quando perguntou: por que a dor física e a miséria são menos aflitivas que a dor moral? Ele não se cansa de afirmar que Eça é muito superior a Machado, que é o maior escritor brasileiro. Por isso eu quis ler no original o rival de Eça. Coisas de amantes. Agora só falta dissipar uma dúvida. Dúvida de leitora apaixonada.
Não entendi se ela se referia à obra de Machado ou ao resíduo da paixão recente. Esvaziou uma taça com um gole prolongado e nervoso, depois abriu e fechou várias vezes o livro Papéis Avulsos, como se procurasse algum segredo dentro do volume de capa dura; com esse gesto impaciente, um lápis caiu no chão. Victoria se curvou para pegá-lo. Fingi não olhar para o decote da blusa azul, um decote em V, em cujo vértice brilhava uma flecha bordada. Meu fingimento foi desastroso, porque ela sorriu ao fisgar meu olhar indiscreto e eu acabei tomando um gole ainda mais prolongado e nervoso.
Ficamos uns segundos em silêncio. Eu ainda lamentava minha indiscrição, mas esse lamento foi substituído pelo ciúme que senti de Soares.
Acabo de enterrar nossa história, confessou Victoria. Ontem mesmo enviei uma carta para o Soares; escrevi que ele não sabe ler, porque já havia lhe dito que não sabe amar.
Terminaram? Quero dizer, não são mais amantes?, perguntei, ansioso.
Ouça a minha história, disse Victoria. Em janeiro eu viajei para o Algarve e passei uns dias em Lisboa. Quando saía do Palácio da Ajuda, um homem me abordou para contar a história do palácio. Enquanto ele falava, eu reparava o homem. Nem alto nem baixo, roupa simples, um lisboeta mediano. Mas que olhos, e que olhar. Uma viúva recebe um olhar assim e sonha. Eu sonhei. E esqueci o palácio, a Nossa Senhora da Ajuda, as belezas de Lisboa. Esse encontro foi no fim da manhã. Almoçamos no Chiado, próximo ao hotel onde eu estava hospedada. Falei de mim, da minha viuvez que ia completar três anos, falei de Barcelona e da Catalunha. Ele falou de literatura: era um leitor compulsivo. E o que fazia na vida? Leio, ele disse. Consegui um emprego que me permite ler a maior parte do tempo. Bibliotecário? Nada disso: cuido de uma dama. Ganho mal, mas hoje posso provar que Eça é mais talentoso que Machado.
Eu conhecia alguma coisa de Eça, mas nada de Machado, prosseguiu Victoria. Antes da sobremesa, Soares me disse que Machado só escrevia sobre adúlteros e loucos, era um imitador vulgar de Sterne, Shakespeare, Almeida Garrett e alguns franceses. Faltava-lhe a visão crítica da sociedade, do país, uma visão que Eça esbanjava. Além disso, o tom filosofante, voltairiano, dava a Machado um ar pretensioso, puro complexo de colonizado. Teve a pretensão de ser um iluminista nos trópicos. Pretensão fracassada, claro. E ainda inventou narradores que parecem rir de tudo: do leitor, de si próprio, de Deus e até do diabo. Um brasileiro pedante, um cultor de galhofas, disse Soares a Victoria.
Victoria encheu as duas taças e continuou:
Fiquei impressionada com o tom da voz de Soares. Cheguei a pensar que Machado não era apenas um autor, mas também um inimigo. Defunto, mesmo assim, inimigo. Pois bem, o namoro começou naquela tarde. Não vou contar detalhes. Qual é a tua idade?
Vinte e oito.
Um jovem, mas nessa idade já deves ter amado e sofrido. Eu, aos 36, só havia amado um homem e esse homem morreu jovem. Soares foi meu segundo amante. Nós nos encontrávamos em Lisboa, sempre no mesmo hotel. Ele me telefonava toda semana e perguntava: Por que tu não vens tal dia? Eu ia de avião uma vez por mês, às vezes duas. Ele chegava ao hotel na hora do almoço. Comida frugal, porque nosso banquete era na cama. Ele ia embora antes de escurecer. Nunca dormimos juntos porque ele lia à noite para uma mulher.
Um enfermeiro noturno?
Já vais saber, disse Victoria. Soares não me contou mais nada de sua vida. Lia e cuidava de uma dama. Isso era tudo. Às vezes eu achava que ele ia enlouquecer de tanto comparar Eça com Machado; ou que não cuidava de ninguém e só lia a obra dos dois rivais. Uma tarde de maio, antes de sair do hotel ele me beijou e acariciou com tanta volúpia que adiamos a nossa despedida. Foi a tarde mais ardorosa dos nossos encontros. Pensei em alugar este apartamento e me mudar para Lisboa; poderia ter sido a decisão de uma vida, mas foi uma fantasia de minutos. Ou nem isso. O coração humano é mesmo uma caixa de mistérios. Quando Soares saiu, eu o vi da janela do hotel; enquanto ele andava, eu me despedia da Catalunha, sonhando com a vida em Lisboa. Olhava para ele, embebida de desejo e felicidade, que são graças gratuitas. Até cantarolei na minha língua uma canção de amor catalã. Então ele parou e se curvou para um mendigo sentado na calçada. Meu amante tirou do bolso uma moeda, jogou-a para o alto e, quando o cobre ia cair nas mãos estendidas, Soares agarrou a esmola e deu uma gargalhada. O mendigo tomou um susto, os braços dele caíram. Soares enfiou a moeda no bolso, e apressou o passo, balançando a cabeça; talvez cantasse. Eu, que cantarolava, emudeci. Pensei: qual é o segredo desse homem? Quando ele me telefonou numa quarta-feira de junho, marquei um encontro no domingo daquela semana. Ele gaguejou, disfarçou, disse que domingo era um dia ruim. E repetiu: um dia muito ruim. Parei de insistir e ameacei: domingo ou nunca mais. Ele concordou. Quem pode com uma catalã? No domingo, Soares almoçou calado e não quis ir para a cama. Quer dizer, fomos para a cama, mas ele dormiu, roncou. Eu tinha atravessado a península Ibérica para escutar o ronco de um amante e esse amante acordou assustado, vestiu-se às pressas, me beijou às pressas e foi embora. Fingi que ia ao aeroporto e segui Soares de longe. Eu me senti ridícula, rebaixada. Ele parou diante de uma casa em Alfama. Havia alguma reunião lá dentro. Três mulheres de preto entraram na casa, e eu fui atrás delas. A sala estava cheia de gente, podia ser um velório, mas era um aniversário. Cantaram parabéns, depois os convidados cumprimentaram uma mulher sentada, toda de preto. Soares não estranhou minha presença. Ao contrário, fez festa quando me viu, e me apresentou à aniversariante, que permaneceu sentada, o colo coberto por uma manta escura. Soares disse: Augusta, esta é Victoria Soller, minha professora de espanhol. Victoria, falei muito de si à minha esposa. E depois de dizer isso, ele se ajoelhou e beijou o rosto da mulher. Um beijo demorado, tão demorado que ele teve tempo de me olhar com uma expressão cínica, voraz, de prazer mórbido. Olhar de um louco. Eu mal conseguia respirar. As pessoas falavam comigo, eu não ouvia nada. Minha rival era uma mulher idosa, mais velha que ele. Só então percebi que Augusta estava sentada numa cadeira de rodas e segurava um terço. Ela fez um sinal: queria falar comigo. Eu me curvei e ela cochichou estas palavras no meu ouvido: Ensine meu marido a amar, nem que seja em espanhol. Soares concordou, rindo, como se tivesse escutado. Saí de lá chorando, e amaldiçoei aquele homem.
Victoria levou a taça à boca e me olhou com apreensão; não enxugou os lábios que o vinho avermelhara ainda mais. O rosto dela quase tocou o meu quando disse em voz baixa:
Agora quero encontrar aquele louco nas páginas de Machado. Mas em qual conto ou romance? Tu sabes, professor?
Milton Hatoum é escritor, autor do romance Dois Irmãos e da novela Órfãos do Eldorado. Encontros na Península é um dos 13 contos de A Cidade Ilhada, livro que a Companhia das Letras lança no fim do mês.

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