segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Esaú e Jacó – Machado de Assis

A política brasileira

“— Mas o que é que há? Perguntou Aires.
— A república está proclamada.
— Já há governo? — Penso que já; mas diga-me V.Ex.ª: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto, uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. —‘Confeitaria do Império', à tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V.Ex.ª crê que, se ficar ‘Império', venham quebrar-me as vidraças? — Isso não sei.
— Pessoalmente, não há motivo; é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo…
— Mas pode por ‘Confeitaria da República'…
— Lembrou-me isso a caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje e perco outra vez o dinheiro.
— Tem razão… sente-se.
— Estou bem.
— Sente-se e fume um charuto.
Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o socorro do vizinho. S. Exª. com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses — ‘Confeitaria do Governo'.
— Tanto serve para um regímen como para outro.
— Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida… Há, porém, uma razão contra. V.Exª. sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem a tabuleta; entretanto o que eu procuro é o respeito de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir com ou outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano…
— Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a edição de um almanaque.
E depois de alguns instantes:
— Olhe, dou-lhe uma idéia, que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à mão, e será a última. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título: ‘Fundada em 1860'. Não foi em 1860 que abriu a casa?
— Foi, respondeu Custódio.
— Pois…
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, nem para as paredes ou móveis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou e confessou que a idéia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra idéia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
— A outra idéia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel que dizia.
Custódio leu, releu e achou que idéia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito: sendo as letras debaixo menores, podiam não ser lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer inimigo pessoal não entende logo, e… A primeira idéia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação fazia timbre em ser antigo. Quem sabe que não era pior que nada?
— Tudo é pior que nada.
— Procuremos.
Aires achou outro título, o nome da rua, ‘Confeitaria do Catete', sem advertir que havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente a Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo depois que o que fez falar o Custódio foi a idéia de que este título ficava comum às duas casas. Muita gente não atinaria com o título e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de maneira que só ele faria as despesas da pintura, e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isso, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que, em meio a tantas tribulações, contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não por nada, a não ser que preferisse seu próprio nome: ‘Confeitaria do Custódio'. Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, ‘Custódio' em vez de ‘Império', mas as revoluções trazem sempre despesas.
— Sim, vou pensar, excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado em lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo sem desespero”.

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